terça-feira, 15 de julho de 2014

Ser ou não ser vira-latas?

Amigos, termina a Copa das Copas e a Alemanha é a grande campeã! Sim, a Alemanha que não fugiu de suas raízes idealistas e veio praticar, no Brasil, a obra de arte total, a Gesamtkunstwerk wagneriana. E não digo que os alemães buscaram isso apenas na bola rolando, mas nas preparações técnicas de antes e depois das partidas, nas relações de convívio com os brasileiros, nas posturas que assumiram diante de nossa e outras culturas, nas atitudes diante da imprensa e, consequentemente, dos olhos e ouvidos eletrônicos do mundo. Os alemães se esmeraram nos mínimos detalhes para não errar em nada, para serem perfeitos e precisos, para serem campeões. Estudaram, se dedicaram, planejaram, colocaram em prática e venceram. Adicionaram ao seu tradicional futebol força a leveza chata do tic-tac espanhol, apresentando um estilo particularíssimo de jogar, nada botinudo, aberto, longe do famigerado e entediante futebol de resultado. E foram, além de tudo isso, um grupo unido, com o impecável comportamento de universitários bons-moços, simpáticos, cheios de fair play e humildade, etiqueta e elegância. E digo mais: campeões absolutos: dentro e fora de campo! 

Sem tirar um pingo de mérito dos alemães, afirmo, sem papas na língua, que a fratura exposta que sofremos na acachapante derrota de 7 a 1, é fruto de um longo processo de mutilação e esfaqueamento levado a cabo, de modo sistemático, por nós mesmos. E a origem disso tudo, a meu ver, é clara como um céu de brigadeiro, explícita como um trauma típico, prato cheio para psicanalistas de quatro costados, longe ou perto dos divãs: o sonoro fracasso do time transbordante de craques, sob comando de Telê Santana, em 1982. A partir dali, ser um Rei Zulu ou Príncipe Etíope da arte da bola virou uma danação milenar, que devia ser minuciosamente extirpada de nosso futebol. E o que aconteceu? A verdadeira maldição que nos perseguiu até 1958, o complexo de vira-latas, retornou durante as luas cheias mais improváveis, e os jogadores brasileiros passaram a se revirar, com constância cada vez mais freqüente, como Boris Karloffs tranformados em lobos mal-ajambrados e vadios. 

A partir da derrota da seleção comandada por nosso Fio de Esperança tricolor, mestre Telê, o escrete nacional passou a entrar em campo como um Hamlet diante da caveira de Yorick, cheio de dúvidas metafísicas e existenciais: “Somos ou não somos ainda vira-latas?” Pelas esquinas, bares e tablóides, “entendidos” de toda cepa, relinchavam como quadrúpedes de 28 patas: “Os esquemas táticos evoluíram, os europeus são modernos, sofisticados, e nós estamos atrasados, não sabemos nada de futebol, temos que mudar tudo urgentemente!” E, como reis que desprezam a própria realeza, Lears alucinados sem Bobos lúcidos ao redor para dizerem as maiores verdades brincando ou as mais irresponsáveis brincadeiras com verdade, começamos um trabalho sistemático de autoflagelo medieval! E isso abriu um largo espectro reativo que se reflete na base, nos fraldinhas, nos infantis e juniores, impregnando a mentalidade de todos, do dirigente corrupto, dos técnicos e jogadores, do subalterno baba-ovo, das donas de casa corujas, dos descolados e playboys da zona sul, do pé-rapado mais endividado, do intelectual pós-doutor, do banqueiro blasé, do mendigo na sarjeta que, antes de apagar, mamado como o diabo gosta, ainda balbucia misticamente: “O craque não tem mais vez no futebol moderno!” 

Nesse percurso, ainda demos alguns suspiros de genialidade com a presença de dois ou três craques renitentes, obsessivos, que superaram a licantropia de filme B, de makeup rastaqüera, feita com o restolhal das superproduções, e conquistaram, a serviço de times de boa qualidade e prudentemente organizados, duas taças – em 94, Bebeto e Romário; em 2002, os dois Ronaldinhos e Rivaldo. Sempre vacilantes entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Contudo, em 2014, finalmente conseguimos o que perseguíamos desde 1982: transformar nossos deuses e heróis lúdicos, ensaboados, improváveis vira-latas entronizados - que nunca souberam a letra parnasiana de nosso hino nacional, que nunca tiveram ataques epiléticos de civismo ornamental, que sempre chamaram nossos adversários de Joões - em novos ricos malhados e politicamente corretos, em lobisomens sem glamour, autênticos canastrões amadores, multitatuados, multiconectados, ajeitando o bigode de mariachi granadeiro ou os cabelos descoloridos platinados diante de selfies e telões.

sábado, 5 de julho de 2014

Zagueiros geniais


Amigos, que jogaço! Daqui a cinqüenta anos, quando forem perguntar a qualquer um que tenha visto Brasil e Colômbia, no final de tarde de ontem, como foi, de verdade, o duelo em Fortaleza, ouvirá a resposta extasiada ecoando pelas espirais do tempo: um jogaço! Todos os que viveram a experiência sabem que estiveram diante de um acontecimento mítico, do qual nascem heróis, vilões, covardes, galeria de personagens que poderia ter saído diretamente da Batalha do Avaí, óleo de Pedro Américo, para o campo verdejante onde ocorreu a peleja lendária! E que peleja, meus amigos, que peleja! De encher os olhos até do entediado mais blasé, do romântico mais abissal, gélido e insensível aos encantos e tragédias do esporte bretão. E direi mais, um jogaço como o de ontem despertou o interesse até dos mortos, que vieram aos bandos, translúcidos, para admirar e se emocionar com o espetáculo memorável!

O primeiro tempo do time do Brasil lembrou o segundo da final da Copa de 70 contra a Itália! Impecável! Primoroso! Juntamos a arquifamosa disciplina tática, de fraque e cartola, dos europeus com a ginga, a raça, a quebra de asa brasileira. Diria que se terminasse três ou quatro para nosso escrete não seria exagero, pelo contrário, seria o retrato nítido, fiel, de um domínio absoluto, cabal, que se construiu em campo como uma verdade deslavada e ululante. O Brasil jogou e não deixou os colombianos jogarem. Nossos heróis se desdobravam, se multiplicavam em cada parte do gramado, causando vertigem ao adversário. Aliás, ao grande adversário, ao respeitável adversário que, se não possui a tradição de fazer grandes campanhas em Copas do Mundo, vinha realizando uma jornada de encher os olhos, inclusive das hostes dos “entendidos”, que já davam como certo um tropeço precoce de nosso escrete!

Bem, agora vamos aos heróis, aos guerreiros ungidos pelos deuses do futebol para a glória e para a eternidade! Foram dois brasileiros, dois monstros, dois gigantes, dois titãs: Thiago Silva e Davi Luiz! Não só pelos gols, que nada mais foram do que o coroamento “natural” do futebol majestático que apresentaram, mas por tudo o que fizeram ontem como heróis, guerreiros, semideuses. Amigos, nosso miolo de zaga só faltou fazer chover canivetes, pois, na verdade, fez coisa ainda mais estupenda: abriu o mar vermelho para que toda a seleção exibisse a arte vital do futebol brasileiro.

Um, possesso, com raça e vibração de quem está dominado por mil espíritos, dando a vida a cada jogada, lutando epicamente até o final; o outro, mais técnico e elegante, mais clássico, mas igualmente ferino e voraz na fome de bola e na sede de vitória incessante. Davi Luiz e Thiago Silva são os Dióscorus, Pólux e Castor, os irmãos gêmeos complementares de nosso miolo de zaga, que mudam os destinos - coração na ponta da chuteira - das batalhas mais renhidas, mais célebres, mais ferozes.

A suprema ironia que estamos vivendo nessa Copa de 2014 é que os craques brasileiros mais tarimbados, mais preparados para as batalhas campais que são os jogos de um mundial, são da defesa, mais especificamente do miolo de zaga, não do meio de campo e ataque, como sempre nos foi habitual; com algumas exceções, claro. Trata-se da Copa das Copas, que concentra em seus jogos, de modo pulsante e vivo, todo o imprevisível e insondável do futebol! Mas vocês hão de retorquir: “- E Neymar, Sr. Nelson? E Neymar?” E eu lhes respondo: “Sim, Neymar é um cracaço, um jovem cracaço, que ainda vai nos trazer muitos outros futuros canecos! Mas no jogo de ontem, a equipe toda jogou com a faca na boca, e Neymar não desequilibrou, foi mais um guerreiro liderado pelos nossos dois zagueiros, nada botinudos, quase não zagueiros, cheios de categoria e vigor, imensos, geniais.”

Mas toda batalha tem seus covardes, seus vilões também e, na de ontem tivemos dois exemplos atávicos desses tipos paradigmáticos. A atuação do juiz foi de uma vilania própria dos melodramas mais caricaturais! O árbitro espanhol Carlos Velasco se omitiu, deixou o pau comer, e conseguiu desagradar a brasileiros e colombianos, numa demonstração de incompetência e pusilanimidade inigualável. Atitude que criou as condições para que acontecesse a entrada criminosa, desleal, cínica, vindo por detrás, do lateral-direito colombiano Camilo Zuñiga sobre Neymar, pegando o jovem craque brasileiro desarmado, se preparando ainda para dominar a bola, numa joelhada imprudente e insana. O lance que resultou na fratura da terceira vértebra lombar da coluna de nosso camisa 10, e que tirará o bailarino do improvável da Copa, foi digno das grandes covardias e vilanias que entraram para a história e/ ou para a galeria das cenas trágicas de clássicos da ficção...

Não posso terminar esta coluna sem contar o encontro maravilhoso que tive ontem à noite, após o jogaço de Fortaleza, com duas pessoas muito queridas minhas. Desci para comprar um cigarro no bar da esquina e, assim que cruzo um dos inúmeros blocos de foliões verde e amarelos em êxtase dionisíaca pelas ruas, sinto um cheiro de flor rara – A flor azul de Novalis? A flor de lótus de Buda? -, velho conhecido ao meu redor. Quando olho para o lado, me deparo com todo o glamour e poesia da Viúva Botafoguense, de braços dados com o seu marido falecido, o Tricolor de Lábios Roxos. A melindrosa dos loucos anos 20, sempre de boquinha pintada de vermelho à Glória Swanson, cabelo à la garçonne, vestido tubular de seda, trazia, em uma das mãos, a indefectível piteira com uma cigarrilha acesa na ponta e, na outra, uma taça de champagne francesa ainda borbulhante. Seu marido não largava a milenar garrafa de vinho báquico e, pelo seu estado, já devia estar na quarta ou quinta. O casal estava lindo, dando beijos e abraços fervorosos, dançando e cantanto charleston ao ritmo da batucada de rua mais improvisada e suja.

Ao me ver, a darling soltou gritinhos de felicidade: “Ulalá! Sr. Nelson! Que prazer! Pensei no Sr. o jogo todo! Os deuses o trouxeram até mim!” E me deu dois beijinhos que não abalaram em nada o contorno de coraçãozinho de batom de seus lábios. Depois, trespassada por uma iluminação zen, saiu vaticinando palavras encantatórias: “Seremos campeões, Sr. Nelson, pode anotar! Depois do jogo de hoje, as hienas e chacais, mestres da destruição e do mau agouro, não podem mais falar mal da seleção, comme il faut. E nosso escrete, ainda preso aos resíduos do impregnante e chato complexo de vira-latas que nos persegue há anos, precisa ser desprezado e humilhado para jogar como um furacão! Por isso, vejo com bons olhos a saída de Thiago Silva e Neymar do próximo jogo! Os “entendidos” vão gritar aos quatro cantos, diariamente, nas manchetes e nas esquinas, que já perdemos para a poderosa Alemanha! Só assim os guerreiros, que entrarão em campo na próxima terça, virão possuídos, alucinados e farão nova partida memorável e seremos hexacampeões, Sr. Nelson!”

Assim que terminou de falar, o Tricolor de Lábios Roxos, que nem me vira, continuando a dançar alegre no meio da multidão, nos localiza conversando, e vem, com passos voláteis de fantasma que é, nos abraçar com toda a felicidade e calor do mundo! Com vinho derramando pelo canto da boca, nos convida para tomarmos a saideira no Lamas! Eu, que só descera para comprar um cigarro no bar da esquina, diante de convite tão sedutor, aceito, me deixando dominar pelo entusiasmo febril que se espalhava pelas ruas, poros, olhares.

Antes que pudéssemos sair, o Tricolor de Lábios Roxo me puxou num canto e sussurrou com sua voz fina de criança defunta: “- Terei que ir embora assim que o primeiro canto de galo ecoar na madrugada, Sr. Nelson, o Sr. sabe disso, não tem jeito... Mas pode anotar aí em seu caderninho de tricolor apaixonado como eu: o Brasil vai ganhar da Alemanha com um gol decisivo de Fred, o artilheiro do engenho e arte, no finalzinho do jogo!”. E, assim que terminou de proferir essas palavras, ficou um tempo estático, congelado, os olhos vítreos encarando um ponto infinito qualquer...

Logo depois, fomos embora os três, de braços dados, andando rumo ao Lamas, entre baforadas de ópio e longos goles de vinho e chandon.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

A dentada metafísica

Amigos, depois de passar o dia escrevendo na redação do jornal, resolvi abandonar o paletó e dar um passeio à beira-mar ao cair da tarde. A cidade esplendia de pessoas de todas as nacionalidades, tamanho, raça, cor... a vida abrindo-se em leque pelas calçadas, múltipla, variegada, parecia querer abanar o Cristo de pedra-sabão com seus movimentos, em conjunto, lentos e magistrais... uma babel de línguas enfeitiçava o ar, dando voz ao silêncio da maresia, fazendo do Rio a terra de toda a gente, como um dia falou, em tom menor, o poeta Manuel Bandeira. A Copa das Copas terminara a sua fase de grupos e as pessoas andavam pelas ruas como se passassem por portais entre, no mínimo, duas dimensões: a dos fantasmas da volta da rotina cotidiana e a do encantamento vivido diante das pelejas e gestos imprevisíveis deste mundial...

Cada um que exibia a camisa de seu país, e dos clubes de futebol mais amados de seu país, as envergavam como estandartes de luz, sequiosos por fazer história. O que me trazia, em quadros vivos à memória, ações e gestos marcantes ocorridos nesta Copa: seja por sua grandeza trágica; por ironias do destino; pelos impulsos revelados no coração da realidade, advindos das lonjuras do inconsciente mais profundo, individual ou coletivo; seja pelo atavismo cultural menos óbvio e mais passional possível.

Quem, em sã consciência, diria que a Costa Rica seria a sobrevivente vitoriosa, sem um arranhão, do Grupo da Morte? Quem diria que seleções campeãs ou tradicionais como Espanha, Inglaterra e Portugal voltariam para a Europa no primeiro navio de carga que atracasse no cais? Arúspices, xamãs, pais de santo, pitonisas, videntes de fundo de quintal seriam desmoralizados e morreriam de fome se vaticinassem, em êxtase, tais resultados.

E os lances, as atitudes, os movimentos – dramáticos e incontornáveis - que emergiram dos verdadeiros campos de batalha em que se desenrolaram as pelejas nessa Copa do ataque de coração aberto, do inesperado, do imprevisível? E a cotovelada nas costas dada pelo meia de Camarões no atacante croata? E os pênaltis não marcados e os marcados de modo duvidoso, a partir de representações canastronas dos jogadores atores de ocasião? E o lateral uruguaio que se recusou a sair de campo, ainda que combalido, não querendo abandonar por nada a arena de combate? E a dentada inapelável, infantil, arcaica, voraz, cega de Luisito Suárez? O que dizer desse gesto vindo das regiões mais insondáveis do ser? Que rito mágico quer recuperar a dentada metafísica do atacante da seleção Celeste Olímpica?

Lembro que em novembro de 1957, numa crônica para a Manchete Esportiva, escrevi sobre uma cusparada que Dida, jogador do Flamengo, lançou na bola, antes de Osmar, do Canto do Rio, bater uma penalidade nos últimos minutos do jogo, que daria o empate para o time de Niterói, perdendo então, àquele momento do match, por 2 a 1. Chamei-a de cusparada metafísica e a elegi como meu personagem da semana. Sim, a cusparada que não deixou a bola entrar e deu a vitória ao Mais Querido. O que moveu o atacante uruguaio, reincidente pela terceira vez, ainda que sabendo-se sob os mil olhos do monstro das câmeras de tevê, para repetir de novo a mesma ação obscura? Quais forças, místicas e profundas, o levaram àquela dentada transcendente e insólita?

E justo no momento em que tais reflexões me visitavam, surge à minha frente o Filósofo Botocudo, o sábio pós-moderno das florestas tropicais. O xamã do tronco lingüístico Macro-Jê vinha com andar elegante, como se desfilasse numa passarela internacional de moda, de bermuda jeans, sem camisa, de óculos escuros Maui Jim, com os seus indefectíveis botoques labiais e auriculares, colares e cocares de penas, o corpo untado de cinza, jenipapo e urucum, com um escapulário escrito Uruguai sobre os ombros e pescoço, segurando em uma das mãos o seu iphone.

Ao me ver, abriu um sorriso familiar, íntimo, de quem encontrava, finalmente, um irmão de alma e tribo, após longa jornada intangível pelos universos místicos e insondáveis, que visita com freqüência, a fim de negociar com os milhares de espíritos da natureza e da cidade. Sem poder conter a felicidade de encontrar criatura tão especial e amiga, dei-lhe um abraço fervoroso, fazendo-lhe, inevitavelmente, a pergunta que não quis calar: “Por que escapulário do Uruguai, sábio tropical? Abandonou a seleção canarinha, a nossa pátria de chuteiras?”

O Filósofo Botocudo, então, respondeu, pausadamente, de modo claro e firme, como quem conversa em pé de igualdade com montanhas, árvores milenares, noites cósmicas, penhascos e prédios de aço e vidro:

- Sr. Nelson minha alma transborda de contentamento ao reencontrá-lo, mestre das palavras encantatórias! O Sr. é o único homem branco que sabe manipular as potências dos significantes flutuantes, que abrem os portais que levam às muitas dimensões e mundos espirituais! Só o Sr. pode compreender a homenagem que estou prestando ao descendente contemporâneo da tribo amiga dos guaianás, Jês do Sul, cujos antepassados foram nossos antigos aliados em batalhas épicas contra tupis e colonizadores europeus filhos de Maíra. O bravo guerreiro Luisito Suárez merece cantos e danças imemoriais, pois apresenta ao mundo um de nossos rituais mais sagrados e tradicionais: a antropofagia...

Grande mestre do Brasil Profundo, respondi, muitos o estavam chamando de canibal, mas parecem não conhecer os ritos de nossos antepassados. Canibal come carne por fome e/ ou ferocidade, sem os cuidados detalhados dos ritos sagrados. O antropófago, por sua vez, realiza um ritual cósmico, de incorporação das forças do inimigo potente. Suárez fica a meio termo: tem um pouco do vale-tudo, de briga de rua, de teste dos limites das crianças; e tem o rito futebolístico do artilheiro solitário, brigando sempre com dois ou três zagueiros, que, para superá-los usa artifícios inesperados. Mas o que me parece mais interessante nessa história toda é que, mesmo sob o império do monstro de mil olhos das câmeras de tevê, seu instinto mais primal venha se expor de modo serial, desreprimido, incontido...

Nesse instante, vejo atravessar a rua, com seu casal de filhos lindos, um em cada braço, o “negão de ventas raciais”, o descendente bantu tricolor de coração. Estava vestido para banho de mar, assim como os filhos e, quando me viu conversando com o Filósofo Botucudo, abriu um sorriso de uma simpatia volatizada, captando a vibração que estava no ar, presságio de grandes vitórias e festas triunfais. Depois de dar um abraço apertado em mim e outro no sábio pós-moderno zen das florestas tropicais, o afrocarioca, sem meias palavras, entabula uma falação iluminada sobre o escrete, a imprensa e a torcida brasileiras:

- Sr. Nelson, está na hora do escrete brasileiro abandonar a humildade e o bom-mocismo! Se quer ser campeão, tem que entrar na guerra de foice no escuro que é uma Copa do Mundo. Todos estão dando a alma em campo pelos seus países, todos estão, inclusive nós; contudo, todos estão reclamando dos árbitros, fazendo toda sorte de pressão, dentro e fora de campo, disputando palmo a palmo o terreno e o ambiente em que se dão as batalhas! Nós parecemos dar beijinhos na testa de nossos inimigos, abraços no larápio que nos rouba em campo, tapinhas nas costas de quem acabou de nos pisar na cara! Veja o caso do pênalti genialmente cavado por Fred: a imprensa, os “entendidos” em geral, o povo das ruas, todos condenaram como se o nosso artilheiro do engenho e arte estivesse espalhando a peste na avenida! Não dá, Sr. Nelson, assim não dá! O politicamente correto é a outra face, mais adestrada e submissa, de nosso complexo de vira-latas! Temos que mudar isso já ou não seremos hexa! O futebol poético do Brasil, mesmo depois de anos de técnicos e burocratas tentando enquadrá-lo no futebol de prosa europeu, ainda é o melhor e mais bonito, o mais plástico e elegante de todos! Vamos ser campeões na categoria, na elegância, no peito e na raça! E chega de humildade politicamente correta! Agora é a hora de convencimento e empáfia! Sim, a hora de mostrar atitude e autoridade!



O “Negão de ventas raciais” parecia emanar luz por todos os poros, só faltou levitar e sair andando sobre as águas. O Filósofo Botocudo silenciou em respeito ao êxtase do descendente bantu, parecendo dialogar interiormente com todos os exus que dançavam pelo espaço impalpável ao redor do afrocarioca. A menininha mais nova puxou o rosto do pai numa carícia e disse, olhos nos olhos: - Papai, vamos dar um mergulho? Essa simples frase doce e sincera, extraordinária pela sua singeleza e tempo preciso, fez com que o “Negão de ventas raciais” retornasse a sua condição de pai cuidadoso e amoroso: - Claro, meu amor! Respondeu. E saíram os três alegres correndo e brincando pelas areias da cidade maravilhosa, rumo às águas azuis do mar!

domingo, 15 de junho de 2014

Humilhados e Ofendidos

Amigos, após os quatro primeiros dias de jogos, tudo indica que essa será a Copa das Copas! A Copa do Mundo que, mais do que meramente histórica, arquivada nos registros oficiais como mais um evento exótico nos Trópicos, ficará impregnada na alma e nas retinas de todos como a Copa dos lances e gestos polêmicos, patéticos, trágicos, cínicos, políticos, imorais. Os idiotas da objetividade, os lorpas e pascácios irão me perguntar: - imorais, mas por quê?

Sim, imorais! Quer maior imoralidade do que aquela abertura pífia da Copa, de escola primária, de um bom-mocismo inaciano, apresentando um Brasil sorridente e submisso, num país com uma pletora de artistas e criadores vitais, experimentais, radicais, pulsantes, e que começa a fazer presente seu incontornável destino de país do futuro? Quer coisa mais imoral do que os Narcisos às avessas, que cospem na própria imagem - já que o futebol é a pátria em calções e chuteiras -, tratarem o pênalti genialmente cavado por Fred, o artilheiro do engenho e arte, como um gesto execrável, quase um acinte público, numa tradição futebolística de grandes heróis – Nilton Santos, Luizão, Rivaldo, Pelé, Branco - que ajudaram a vencer pelejas homéricas com ginga e brilhantismo na canastrice melodramática de ocasião? Quer maior imoralidade do que a acachapante derrota, proibitiva e irresgatável, sofrida pela Espanha, atual campeã do Mundo, humilhada sem dó por um 5 a 1 vingativo e desmedido aplicado pela Holanda, vice do Mundial de 2010? Quer coisa mais imoral do que o desgoverno dos gastos astronômicos, para além do padrão FIFA, num país carente de justiça social, saúde, educação e transportes dignos, na organização deslavada de uma Copa que poderá coroar o fim definitivo do complexo de vira-latas do brasileiro?

Bem, eram nessas e em outras coisas que eu pensava quando, inesperadamente, ao dobrar a esquina da Álvaro Chaves com a Pinheiro Machado, em Laranjeiras, vejo a Loura Indignada passando, como um furacão, na parte de fora da calçada. Ao me ver, estanca o passo, ilumina-se com um fulgor que só os tricolores possuem - que os distinguem de todos os outros, e que permite que se reconheçam em meio à multidão -, corre em minha direção e me abraça como se nosso encontro casual estive marcado há milênios. Depois dessa efusão de afeto pelo reconhecimento de um irmão de paixão e alma, começa a desabafar, ritmando o movimento do dedo indicador e do pé direitos, simultaneamente, a cada ênfase dada às palavras, emitidas com a dor de Valquíria wagneriana, armada de elmo e lança, recuperando o herói morto em campo de batalha, para participar do exército mítico de Odin:

- Sr. Nelson, o que está acontecendo com essa nação? É o fim dos tempos; o mundo realmente está de ponta cabeça! O Sr. está acompanhando o achincalhe, o quase apedrejamento em praça pública que estão querendo impor ao nosso artilheiro-mor, o craque do engenho e arte? Estão ofendendo descaradamente quem nos deu dois títulos nacionais e a Copa das Confederações! Meu deus! Bem que o Sr. escreveu que toda unanimidade é burra, que o videoteipe é burro, e que as hienas, abutres e chacais, os “entendidos”, sempre rosnando de frustração, voltaram a influenciar os brasileiros com suas asneiras, agora a partir da verdade gélida do monstro de mil olhos da tevê, com seu detalhes e miudezas, com seu slow-motion, com seu replay desapaixonado! Se as câmaras dissecam as imagens e comprovam a verdade dos fatos, pior para a verdade e muito pior ainda para os fatos! E a vida vivida no presente? O acontecimento que aflora no calor trágico das batalhas campais, em que os jogadores e os juízes atuam movidos por um complexo que une instinto, intuição, inteligência, reflexo, tudo junto, ao mesmo tempo, sem segunda chance, tendo que tomar decisões de vida ou morte a cada segundo e que faz do futebol a arte viva que é? Hein, Sr. Nelson, me responde! Estão criando um esporte novo, uma outra coisa, um dispositivo politicamente correto, que pode ter o nome que quiserem, menos o de futebol!

Ainda tentando me recuperar da tontura que as flechas giratórias de palavras, lançadas pela deusa anglo-saxã, me causaram, balbucio uma resposta tímida, cuidadoso e respeitoso diante do êxtase indignado da deidade:

- É, amiga tricolor, os tempos estão mudando... Mas digo, sem retoques, que Fred sofreu um pênalti óbvio, ululante, e que o zagueiro croata puxou-o pelo ombro, não de modo descarado, mas puxou-o. O juiz viu e marcou. Estamos tão acostumados com a verdadeira luta greco-romana que zagueiros e atacantes travam nas grandes áreas dos jogos do futebol brasileiro que, quando um juiz japonês marca falta num toque assim, existente porém despretensioso, desacreditamos na vítima e enchemo-nos de fúria e repulsa. A beleza plástica e dramática do lance, contudo, não pode ser desprezada e esquecida: a queda maravilhosa de nosso artilheiro, que atuou como um ator acionado representando Aquiles sendo flechado no calcanhar, numa tragicomédia escrita por um Victor Hugo embriagado... Deixa estar, Loura Indignada, continuei, a Copa está apenas começando, tenho certeza que o caneco será nosso, e que Fred, o artilheiro do engenho e arte, junto com Neymar, o bailarino do improvável, vão fazer a multidão brasileira subir pelas paredes como lagartixas profissionais, se pendurar nos lustres, dar cambalhotas de entusiasmo báquico!

Nesse instante, a deusa da Aurora Boreal é atravessada por um raio lúcido, me olha com olhos vítreos, abre um sorriso de arco luminoso e responde:

- Sr. Nelson, por isso que eu te amo! O Sr. é um poeta, vive possuído por forças sagradas, telúricas, brasileiras! Isso, a Copa está apenas começando! Fred vai calar a boca de muita gente! Principalmente dos “entendidos”! Isso mesmo, Sr. Nelson! Maravilhoso! Viva! Salve! Evoé! Um poeta delirante!

E virou-se num ímpeto repentino, como se fosse subir em seu cavalo alado de Valquíria, e seguiu em frente, andando com a elegância de uma rainha inglesa e gargalhando alto como se tivesse baixado a pombagira, repetindo as minhas últimas palavras com voz misteriosa... se pendurar nos lustres... entusiasmo báquico... lagartixas profissionais...

Como que aliviado, após o contato com aquela potência vital ctoniana, segui o meu caminho rumo ao jornaleiro, a fim de ler as manchetes dos jornais penduradas na lateral da banca. Todas louvavam o feito épico da seleção da Holanda, a divina goleada aplicada na Espanha, a invencível armada que vinha dominando o cenário futebolístico nos últimos anos, com seu estilo tic tac, com seus craques pacientes e precisos, com seu futebol envolvente, encantatório, de terço rezado em silêncio católico. Contudo, toda aquela euforia feérica da imprensa e do homem das ruas, com a certeza absoluta de que tinha despontado o verdadeiro candidato ao título, a seleção holandesa, e que as pretensões de manutenção do reinado espanhol tinham definitivamente naufragado, me incomodava e inquietava.

Enquanto tentava decifrar a sensação que me visitava, sinto pousar em meu ombro, de modo lânguido e enigmático, um objeto que me causou, de imediato, calafrio. Assim que me viro, percebo que fora tocado pela palma macilenta e lívida da mão de um velho conhecido: o Atleticano Melancólico, o Romântico das Alterosas, sempre atravessado pela coita amorosa, mas que, ao me reconhecer, desprendeu um rápido brilho do fundo dos olhos tristonhos para, logo a seguir, se perder na retina, retornando, assim, para o seu estado mórbido constante de abatimento profundo. De modo pausado e olhando para o infinito, o Atleticano Melancólico me disse as seguintes palavras:

- Sr. Nelson, é sempre um prazer revê-lo... O Sr. não imagina quanto... Vejo que o Sr. está tendo, talvez, o mesmo pressentimento que eu. 5 a 1 é um placar monstruoso, fatal, que promove duas vítimas, a que perde e a que ganha. Ao contrário do que todos estão pensando, acredito que a Holanda cavou, com os próprios pés, um doloroso e irremediável abismo: sangrou de humilhação o adversário, numa desmedida trágica, a hybris que causa o ciúme dos deuses do futebol das Copas do Mundo, que seguem, atentos, aos jogos entre equipes campeãs. Se tivesse ganhado com um sábio 1 a 0 ou, no máximo, um sóbrio 2 a 0, se não tivesse dominada pela vingança, numa cegueira crassa, não sossegando enquanto não visse a Espanha arrasada, a seleção holandesa seria, sim, pela categoria de seus jogadores e aplicação tática, candidata ao título. No entanto, a real candidata ao título, agora, é a Espanha, que precisava se revitalizar, deixar cair a máscara que pesava, precária, e dessa forma eletrizar seus brios adormecidos. A Holanda, ao espicaçar a Espanha, deu à Fúria o incentivo decisivo que faltava e, como todo vencedor convencido de sua inquestionável vitória, vai desarmar-se interiormente, perdendo o ódio e a irritação, deixando-se apunhalar pelos próximos adversários.

E mais pálido do que nunca, parando para recuperar o fôlego, após um discurso pungente e lúcido, o Atleticano Melancólico completou, de modo mortiço, mas com a eloqüência retórica de um Vieira ou de um Shakespeare:

- A Espanha foi humilhada e sabemos que a humilhação, a grande e irresgatável humilhação, confere aos homens e aos times uma dimensão nova, uma potencialidade irresistível.

Depois do que, me abraçou com leveza quase inumana, acendeu um cigarro, e ficou olhando, com suas olheiras abismais, os carros passando pela Rua Pinheiro Machado, em Laranjeiras, na Cidade Maravilhosa pela manhã, como se fosse o viajante acima do mar de névoas do arquifamoso quadro do romântico germânico Caspar David Friedrich.

terça-feira, 11 de março de 2014

O Novo Rei Patusco

Amigos, lá pelos idos de 1965, escrevi uma crônica para o eterno Jornal dos Sports chamada Sejamos docemente barrigudos, na qual defendia, entre outras coisas, a qualidade moral do barrigudo, de obesidade cordial e bonachona, em contraponto à vilania canalha, neurótica, cheia de ressentimento e acidez do magro. Por que, agora, passados tantos anos, retomo essas pinceladas boscheanas sobre valores físicos e psicológicos do ser humano? É que, mais uma vez, após anos de ditadura da magreza, de imposição das leis dos fisiologistas, de culto cego ao futebol força, transbordando de jogadores com saúde de vaca premiada, surge um gordinho bem-aventurado! Sim, amigos, um Rei Patusco que vem, do reino da santidade das barrigas, redimir o futebol brasileiro, jogando no Fluminense Footbal Club!


Digo isso, pois todos sabem que o tricolor mais amado e adorado do planeta viveu, em 2013, um ano tenebroso! Desceu os círculos do Inferno de Dante, lambeu a língua de Satã, e só não retornou ao Purgatório da segunda divisão porque Portuguesa e Flamengo se esmeraram em esbanjar incompetência em seus departamentos jurídicos. Futebol é mística, paixão, delírio, aparição divina no seio da realidade, arte clássica, romântica, de vanguarda, performance real, mas, antes de tudo, jogo, e, como tal, tem regras, estabelecidas e cumpridas pelos participantes, seja na pelada de rua mais rastaquera, seja numa final de mundial da FIFA. Se os lorpas e pascácios dizem o contrário, pior para eles.


E, depois de um ano em que foi salvo pelo gongo, de um ano de tragédia anunciada que ficou suspensa como um grito parado no ar, o Fluminense retorna, renovado, como força da natureza que é - ligado ao tempo cíclico que rege os deuses da morte e nascimento, não às entidades do tempo cronológico linear -, apresentando à sua imensa e doce torcida a contratação do ano: Walter, o gordinho artilheiro.


É bom lembrar que os ventres de pipa do futebol brasileiro foram fundamentais para escrever a história gloriosa de nossas chuteiras imortais. O que seria de Pelé, no Santos, sem a elegância - dos tenores italianos, com suas barrigas deslumbrantes -, do futebol incisivo do sempre fora do peso Coutinho? Sem a magia do cracaço tanoeiro Edu? O imenso Fla-Flu, clássico das batalhas cósmicas, públicas e familiares, não seria o mesmo sem o memorável gol de barriga, de gordurinha localizada, de Renato Gaúcho na decisão do carioca de 1995, que deu o título ao Flu no ano do centenário do arquirrival. E o que falar de Ronaldo, o fenômeno, ou do imperador Adriano, sempre açodados pelo superego da balança, num mundo de atletas medíocres de humilhantes barrigas tanquinho?


E, para completar, não seríamos a potência maior do futebol se não iniciássemos nossa trajetória épica de títulos mundiais, em 1958, sob o comando de um gordo, o maravilhoso Feola. Reza a lenda que o sábio balofo dormia o sono dos justos, dos anjos celestiais, no banco dos treinadores enquanto a bola rolava em campo, muito bem tratada pelos craques de antanho. Dotado de uma cordialidade indiscriminada e abundante, Feola conseguiu eliminar a neurose de vira lata magro que se apossou do futebol nacional após a fatídica derrota de 1950 para o Uruguai, num Maracanã abarrotado de fanáticos torcedores brasileiros.


Sim, amigos o Kiko, como Waltinho do Flu é chamado na intimidade, em referência ao personagem de bochechas de bulldog do programa infantil Chaves, veio para resgatar um tipo especial de futebol arte brasileiro, o da inteligência e habilidade dos gordinhos geniais, que usam sua energia nobre como crianças das metamorfoses do espírito de Nietzsche. O filósofo alemão, em Assim falou Zaratustra, fala da auto-superarão do espírito, fazendo a passagem do camelo (besta de carga, que aceita o “tu deves”) para o leão (que diz “eu quero” e conquista a liberdade), até, finalmente, chegar a ser criança (afirmação criativa espontânea, santa e livre).


A diferença fundamental entre o adiposo Waltinho e o mimado Kiko, é que este último tinha como um de seus bordões humorísticos principais a frase nonsense: "Esperem só até eu ganhar minha bola quadrada!". No Fluminense fênix, versão 2014, o gordinho abençoado, com voz de cambaxirra, vaticina aos quatro ventos suas heróicas façanhas porvir, com uma frase que faz muito mais sentido do que poderiam prever os idiotas da objetividade: "Esperem só até eu receber aquelas bolas redondas do Fred e do Conca!"