quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O negão de “ventas raciais”

Amigos, na manhã de ontem, quarta-feira, eu estava chegando no bar da esquina para tomar o meu carioquinha, quando vejo sentado no meio fio um negão atípico. Parecendo um personagem de elenco de apoio de alguma ópera épica sobre as campanhas de Cipião na África, com seus quase dois metros de altura, canela fina, tronco largo coberto com uma camisa do Flu já puída, pescoço longo e orelhas de abano, o sujeito estava imensamente desolado. Apoiando-se no pára-choque de um carro estacionado, dava a impressão de que a qualquer momento poderia desabar para o lado, causando um tremor de terra momentâneo. Ao me apoiar no balcão para fazer o meu pedido, ouço - vindos dos garçons, dos lobos e raposas presentes - comentários dispersos sobre o personagem colossal:

- Nunca vi agüentar tanta bebida. Está aqui desde domingo.

- Quando está no auge da bebedeira, berra aos quatro ventos que só vai embora na hora em que conseguir arrancar o aguilhão atravessado no peito que a derrota para o Vasco deixou nele.

- Já vieram a mulher, os filhos, os vizinhos para levá-lo para casa e ele não arreda o pé.

- Já está na hora de chamar a polícia para dar um trato nesse vagabundo!

- Tá precisando é de um chá de cana, isso sim. Vai voltar bonzinho...

- Deixem o negão em paz! É apenas mais um fanático delirante pelo Tricolor mais famoso do planeta! Só quer purgar a tragédia da derrota que, para ele, é um acontecimento de proporções cósmicas, metafísicas! Deixem em paz o negão de “ventas raciais”!

Este último comentário ressoou pelo recinto como uma luz reveladora da eternidade. O timbre de voz de trombeta do apocalipse me era familiar, familiaríssimo. Levantei a cabeça do jornal, em que lia as manchetes do dia, e, ao olhar para o lado, me deparo com a figura irretocável do Tricolor de Lábios Roxos. Sim, o marido falecido da Viúva Botafoguense, mais vivo do que nunca, saboreando seu vinho matinal, participando ativamente da vida pública da cidade, chegara para acabar com os comentários maldosos, a boca pequena, que ameaçavam virar linchamento moral do afrodescendente.

Nesse instante, o negão de “ventas raciais”, como que teleguiado, um Zumbi redivivo pela audição da voz do Tricolor de Lábios Roxos, se levanta da rua e vem, cambaleante porém firme, a passos largos, lentos e pesados em minha direção. As ventas bufavam querendo aspirar todo o ar ao redor. De repente, pára diante de mim e do Tricolor de Lábios Roxos, parece que vai despencar, oscila, vai e vem, e acaba por falar com uma lucidez e uma clareza límpida, em tom de baixo profundo, que contradizem toda a sua trágica figura: Não agüento mais não ganhar clássicos! Este ano perdemos ou empatamos todos os clássicos! O Fluminense precisa de um goleiro, de um goleiro de verdade! E, também, de um zagueirão, daqueles que põem ordem na casa! E o Vasco? Bem, o Vasco vai perder hoje à noite para o Universidad do Chile! Já que o Fluminense não pode ser tetra, o Vasco vai ser eliminado da Sulamericana e não vai ser penta!

Após sentenciar essas palavras em chave profética, o negão pede uma dose de cachaça e entabula um papo alegre com o Tricolor de Lábios Roxos que, a essa altura da manhã, já estava pedindo outra garrafa de vinho. Me despeço de todos e vou para a redação do jornal impressionado com aquele Rei Zulu, Aquele Príncipe Etíope travestido de cidadão carioca apaixonado pelo Fluminense Futebol Clube. A dor da perda de um jogo maravilhoso, estudado, com duas equipes que sabem jogar e trabalhar a bola, cujo resultado mais justo seria o empate, por causa de um vacilo bobo da defesa ao final, tinha, para o negão, a potência destrutiva de um tufão. Todo o seu corpo se abalava em colapso como se tivesse sido vítima de uma traição amorosa, de uma infidelidade inesperada e repentina. Ele queria vingança, e como não era violento com os outros, bebia feito uma esponja e secava o seu algoz, o time da cruz de malta, com raiva infantil.

Sim, amigos, perdemos a chance mínima que tínhamos de ser tetracampeões brasileiros! E também não ganhamos nenhum clássico carioca esse ano. Claro, vocês me dirão: mas ainda tem a chance de vencer o Botafogo na última rodada! Mas, eu, serenamente, pergunto: para que essa exigência de ganhar clássicos se cada jogo, para o clube verde, branco e grená se transformou num clássico grandiloqüente? Nos últimos anos, qualquer adversário para o Fluminense é tratado como um rival imemorial. Daí as partidas transbordantes de emoções e entregas hercúleas. Daí os jogões que o time de Álvaro Chaves tem protagonizado, propiciando à sua doce e heróica torcida cenas de batalhas memoráveis, que só ampliam a grandeza mítica de história viva do futebol brasileiro, que o Fluminense carrega e se esmera, infinitamente, em enriquecer.

No dia seguinte, uma quinta-feira pela manhã, cruzo, após ter comprado o meu Jornal dos Sports, com o negão de “ventas raciais” parado em frente à lateral da banca da esquina, local onde os jornaleiros costumam pendurar as primeiras páginas dos vários diários da cidade. Está de terno e gravata, sapatos brilhantes, imberbe, com aparência de quem rejuvenesceu dez anos de ontem pra hoje. De mãos dadas com duas crianças, uma em cada lado, um lindo casal de meninos negros radiantes como o pai, que esperam que este termine a sua leitura matinal, se entretendo com o vai-e-vem das gentes e dos carros.

O negão, ao me ver, não me reconhece mas, sem cerimônia, como se fôssemos velhos amigos, e, nitidamente, movido por alguma intuição insondável e precisa, se dirige a mim, falando com voz solar e musical: um tricolor reconhece outro entre milhares, entre milhões. Sei que você torce para o clube das três cores que traduzem tradição. Pois bem, meu velho, vamos ganhar o Botafogo no domingo. Ficaremos em terceiro no Brasileirão deste ano. Mas esse jogo será a arrancada para ganharmos, no ano que vem, o Carioca e a Libertadores. Pode me cobrar. Está inscrito no meu corpo, posso sentir na pele a grafia dessas verdades. Acabo de viver uma iluminação zen! Os deuses do futebol me escolheram para ser o porta-voz de seus desígnios caprichosos...

Depois de emitir tais palavras assombrosas, colocou as crianças no colo, deu um beijo na bochecha de cada uma delas, abriu um sorriso cristalino, e se perdeu em meio à multidão do Centro da cidade.

domingo, 20 de novembro de 2011

Um passeio em Floripa

Amigos, estava eu sentado no sofá de minha casa, me abanando com a revista da tevê, quando tocou o telefone. Fui atender, e qual não foi a minha surpresa ao ouvir, do outro lado da linha, a voz espasmódica da Loura Indignada. Estávamos no intervalo de Fluminense e Figueirense, jogo amarrado, àquela altura, a um sonífero zero a zero. E, se tivéssemos que apontar um time melhor em campo, o esquadrão de Santa Catarina seria o eleito, sem a menor sombra de dúvida. De imediato, fiquei intrigado com o fato da Loura possuir meu número telefônico, mas, senti, também, que fazer uma pergunta comezinha dessas, diante da potência telúrica que a voz dela disseminava pelo ar, seria desfibrar a beleza e o mistério daquele ímpeto indignado. E a indignação, vocês sabem, pode construir e destruir impérios...

Tinha visto a Loura Indignada apenas de passagem, numa rua desleixada de Laranjeiras, e nunca imaginei que pudesse, ao menos, saber de minha existência. Mas a voz era inconfundível e, enquanto ela esbravejava com a elegância dos apaixonados incorrigíveis, eu via, imaginando, seu pé esquerdo em sincronia com o dedo em riste, do outro lado da linha: O que está acontecendo com esse time, Sr. Nelson? Só porque o Corinthians venceu o Galo estão jogando a toalha? Estão esquecendo que somos o clube, a torcida das causas impossíveis? Todo mundo trotando em campo, todos blasés, todos entediados e mortiços? Será que o velho Fluminense tão Flaubert, esteta e desapaixonado, renasceu do gelo, fênix às avessas? O que está acontecendo com a força cósmica encarnada na camisa e na alma tricolor? O quê, meu deus, o quê?!...

Silenciei em respeito ao lamento desesperado, de força matriarcal, daquela mulher anglo-saxã. E, por alguns segundos, ouvimos apenas o ruído vazio da linha, o nada ecoando a pergunta sem resposta para os dois ao telefone. Até que, primeiro num balbucio tímido, e, depois, numa crescente euforia de renascimento, de quem intuía uma nova gênese vital, afirmei: o Fluminense voltará outro para o segundo tempo! Venceremos de goleada! A loura, após alguns segundos de silêncio sepulcral, soltou uma gargalhada nervosa: Mas é um otimista delirante! Adoro os otimistas delirantes! O Fluminense vencerá de goleada, sim, de goleada! Sr. Nelson, meu dia está salvo! De goleada... e desligou o telefone sem se despedir, como uma criança que tinha brincadeiras urgentes a esperá-la...

Amigos, que mortal em pleno domínio de sua consciência, mais sã e mais lógica, poderia imaginar o que aconteceria no segundo tempo do jogo no Estádio Orlando Scarpelli? Quem poderia supor que o Fluminense golearia o time sensação da reta final do Brasileiro 2011, o Figueirense, que estava a 14 jogos invictos, atropelando os adversários mais temíveis sem qualquer dó. Um time muitíssimo bem organizado, à européia, cerebral, coletivo, de toque de bola refinado, dirigido pelo tetracampeão Jorginho, o mais fiel discípulo da escola Dunga de treinadores. Nenhum mortal iluminista, obviamente, filho da razão e da estatística, poderia imaginar o que aconteceria no segundo tempo do jogo. Mas os vivos e mortos alucinados pelo Flu, que sabem que as forças desveladas pelas três cores que traduzem tradição são de outra natureza - se dando na esfera do mítico, do sagrado, do sobrenatural, dos fluxos arcaicos e misteriosos, do poético -, aceitam que tudo é possível quando o time de Álvaro Chaves entra em campo. Por isso, os cardíacos andam sempre com seu isordil; os extáticos, com seu lexotan.

E o que presenciamos foi um segundo tempo memorável, em que o Fluminense passeou em campo, como se o gramado do simpático estádio no bairro Estreito de Florianópolis fosse os Champs Elysèe, em fim de tarde de sol ameno, em pleno século XIX, com pintores impressionistas pontilhando, maravilhados, as mudanças de luz na paisagem ao redor. E foi uma simples mudança de posicionamento no meio de campo tricolor (a troca de posição entre Diguinho e Deco), que levou nosso Mago, mais uma vez, com sua varinha de condão e chapéu de Merlin, a dominar, absoluto, o jogo, ditando a andadura e o ritmo, em adágio cantabille, da partida. Sim, pois o craque luso-brasileiro não se afoba, não se precipita, não perde o seu andamento interior. Assim como Sóbis e Fred, o trio experiente, aristocrático e infernal que, finalmente, o Tricolor tem conseguido colocar, de modo regular, em campo.

Contudo, de novo, Fred estava iluminado. Ou melhor, era, ele próprio, o sol na suave noite da cidade de Santa Catarina. O artilheiro das Minas Gerais fez três gols na goleada de quatro que o Flu sapecou no Figueira. Sete gols em dois jogos! O primeiro, mal havia começado o segundo tempo - e, diga-se, na primeira bola em que o atacante de engenho e arte recebeu limpa em todo o jogo – foi um primor de clareza e domínio de posicionamento: de esquerda, chutando do bico da grande área, forte e rasteira, Fred colocou a bola no cantinho esquerdo do goleiro catarino. O segundo, bem, o segundo foi um lance de pura sorte. Mas qualquer ser humano, para poder crescer, virar adulto, envelhecer, tem que ter sorte, se não, nasce natimorto, é atropelado na esquina, falece num lance casual qualquer. A bola cruzada da esquerda, vinha na direção do goleiro Wilson e do zagueiro adversário, um negão “de ventas raciais”, mas os dois, quase com delicadeza, se confundiram, e a bola chegou, mansa, aos pés de Fred, com o gol escancarado a sua frente: bola no fundo das redes...

O terceiro de Fred nasceu de uma jogada de Lanzini, a jóia portenha do River Plate emprestada ao Fluminense, que deu um balãozinho por sobre a linha de zaga do Figueirense, deixando o artilheiro cara a cara com o arqueiro, e Fred, sem deixar a bola quicar, meteu no canto direito de Wilson, abandonado sob os desproporcionais nove metros e meio de sua meta. Marquinhos fez o seu também, nascido de uma triangulação magistral: depois de um toque do artilheiro para Deco, que, preciso e displicente, com o desleixo do gênio, encostou, com o lado de fora do pé, para o meia-esquerda marcar quase sem esforço; tudo isso acontecendo dentro da grande área do Figueirense, que virou um centro recreativo para as peripécias do ataque tricolor.

Terminado o jogo, a torcida em festa no Orlando Scarpelli, entrevistas dos jogadores, replay dos gols, comentários entre equilibrado e entusiasmado dos comentaristas. Desligo a tevê e vou ao bar da esquina tomar uma cerveja, em comemoração à atuação de gala da esquadra verde, branca e grená. Assim que acabo de dar uma longa golada no chope espumante, saboreando com prazer o líquido dourado, reconheço, no fundo do bar, aos beijos e abraços, sentados numa mesa escondida, o Latin Lover com uma outra mulher, que não a Loura Indignada. O sujeito de cabelo gomalina, bigodinho fino e camisa florida aberta no peito, cheio de colares, também me vê. Pede licença à nova amada, que se mostra aborrecida com a atitude do amante, e vem falar comigo.

Sr. Nelson, que vitória santa! Que jogo dos deuses, encantador! Como jogou o Deco, o Sóbis, o Marquinhos, o Fred... O Fred parecia um beato bíblico, disseminando milagres pelos sertões! Estou até agora embriagado com nossa vitória! Respirando, comendo, transpirando nosso passeio monumental pelo Orlando Scarpelli! Mas sabe com o que estou preocupado? É que os matemáticos estão dando 4% de chances de o Fluminense ser campeão. Tenho medo de que o time amarre uma máscara daquelas! Sabemos que o Flu só se dedica de corpo e alma às missões impossíveis; uns 2% de chances seria a medida exata. Teria certeza absoluta, então, de nosso triunfo!

Os olhos do Latin lover tinham um brilho prismático, o cinismo do conquistador cedera lugar às feições trêmulas dos grandes santos místicos! Parecia que acabara de receber uma mensagem divina, que saíra de uma experiência de êxtase e entusiasmo, todo o seu corpo estava a um passo de levitar. Contudo, de repente, como que flechado pelo princípio de realidade, se aproximou mais de mim e perguntou, em tom choramingas infantil: Ela ligou pro Sr.? Ela quem, retruquei. O meu amor, aquela Loura maldita que não consigo esquecer. Pediu seu telefone pois queria agradecer pela crônica em que ela aparecia como personagem apaixonada pelo nosso imenso Tricolor. Ah, sim, ligou sim. E ela perguntou por mim, o canalha inquiriu ansioso. Não, meu amigo, não perguntou não.

O latin lover, depois de alguns segundos de profunda desolação, retomou, de modo inesperado, o olhar rútilo do possesso e esbravejou: O Fluminense, contra tudo e contra todos, será o campeão brasileiro de 2011! Está inscrito em cada canto desta cidade! Está inscrito nas nuvens, no dorso dos golfinhos, na baba dos cães de guarda! E fez menção de sair apressado do bar. Peguei-o pelo braço e perguntei: aonde você vai? E a moça na mesa te esperando? E o sujeito, agora já completamente revirado, respondeu lustroso: vou procurar minha Loura Indignada! Não vivo sem ela! E quanto à moça, já ficou pra trás na tabela, é flamenguista.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Uma maravilhosa pelada histórica

Amigos, estava eu aqui em casa, preso ao meu trabalho, diante da máquina de escrever, quando uma daquelas fomes incontornáveis se apossou de mim. Era uma terça-feira à noite, feriado nacional, e não havia nada em minha geladeira para comer. No dia da proclamação da república mais insosso dos últimos tempos, em que não se pressente qualquer manifestação de civismo lampejando no fundo dos olhos do cidadão comum, descubro – por meio da lei mais trágica: a da fome - que passei horas trabalhando feito um mouro, esquecido de mim, só me alimentando de café e fumaça de cigarro. Então, com o estômago grudado nas costelas, me sentindo um cão vadio em semana de escassez, em que nem o osso fiel do açougueiro da esquina sobra suculento em seu caminho, saí atrás de algum lugar que pudesse me ajudar a matar quem me matava. Depois de somente encontrar bares e restaurantes fechados, me deparo diante de um oásis reluzente, um mágico supermercado aberto vinte e quatro horas.

No momento em que me dirigia ao caixa do supermercado, com os produtos já selecionados no carrinho, me deparo, quase como que diante de uma aparição mística, com a figura pós-moderna do filósofo botocudo. De cocar, com os indefectíveis botoques no lábio inferior e nas orelhas, sem camisa, cheio de colares multicoloridos pendurados no pescoço, calça jeans, descalço, braceletes e tornozeleiras de penas, o índio do tronco macro-jê consultava em seu smartphone os últimos e-mails que acabara de receber.

Quando levantou os olhos da engenhoca, e me viu vestido com o manto sagrado tricolor, o sábio das selvas tropicais, como se me conhecesse há mais de mil anos, sentenciou: o Fluminense é um time cíclico, regido pela força selvagem do tempo das estações, não é um time de futebol preso às leis do tempo linear cronológico; daí, toda a dificuldade e encantamento de suas vitórias, de seus títulos memoráveis! Torcer pelo Tricolor das Laranjeiras é torcer por uma potência da natureza, imprevisível e fascinante, sempre abalando, com passos de maremoto, os limites da medida humana. Pode anotar aí, na agenda de registros dos grandes feitos, fã do clube mais charmoso do planeta, que amanhã, mais uma vez, o Flu calará as hienas e os parvos, e retornará à arena do Engenhão com uma nova vitória inquestionável e consagradora!

Vocês conseguem compreender, amigos, o que estava se dando ali, numa noite de feriado nacional, num supermercado deserto da Zona Sul do Rio de Janeiro? Um representante de nossa brasilidade mais profunda, aculturado e modernizado, em êxtase diante da visão da mística camisa das três cores que traduzem tradição, proferindo, sem mais nem menos, um discurso que concentrava história e profecia, essência e mutação, passado e futuro do tricolor mais amado do Brasil!

Fiquei por alguns instantes abestalhado, boquiaberto diante daquela figura insólita e onírica, até que abri um sorriso e retruquei: sábias palavras, meu ilustre camarada, sábias palavras! E dei um inesperado abraço no filósofo botocudo, que, aristocraticamente, me cedeu a vez na fila, já que comprava apenas uma garrafa de uísque e eu estava carregado de toda sorte de alimentos.

Em casa, lavando meus braços e minhas roupas, que ficaram manchados do abraço de urucum dado no filósofo botocudo, pensei: a torcida do Fluminense é realmente encantadora! Abriga gente de todas as classes, de todas as culturas, psicologias, etnias! E, num estalo, me lembrei do vaticínio do Velho do Restelo, dizendo que no jogo de quarta-feira teríamos mais torcida do que no jogo contra o América Mineiro. E não é que, no dia seguinte, na hora da esperada peleja, o Velho estava certíssimo? Haviam 11 mil vivos e 31 mil mortos lotando o estádio do Engenhão! Ao todo 42 mil pessoas, mais do que as 40 mil que mostraram, na derrota acachapante do domingo passado, a exuberância sublime da torcida mais doce e fanática do mundo.

Fato comprovado pela cantoria, entoando o vasto repertório de paródias e pregões de amor ao Flu, que os torcedores sustentaram durante os noventa minutos em que se deu a pelada sagrada. Sim, porque, antigamente, somente os Fla-Flus propiciavam espetáculos dessa natureza, em que os contendores, os Irmãos Karamazov do futebol, se lançavam abertamente, com pouquíssima técnica e muita raça, à luta desbragada pela vitória. Como se estivéssemos presenciando uma cena de disputa familiar entalada na garganta dos membros por gerações, que, de repente, deixassem cair os entraves do decoro, e se abrissem para o confronto desnudo e franco! Uma mágoa e um amor desmedidos sendo solucionados no embate direto, corpóreo, entre oponentes umbilicalmente unidos.

E Fluminense e Grêmio são também parentes em suas essências cíclicas de trajetória. Ambos já foram ao inferno mais degradante e ao sétimo céu do futebol em suas histórias. O que vimos no estádio João Havelange foi um duelo de titãs, no qual uma hora um, outra outro, passava à frente do placar e dava sinais de que sairia dali com uma vitória maiúscula, grandiloqüente, consagradora.

Mas coube ao Autêntico Tricolor - pois os outros são times de três cores - a glória final, num placar idêntico, 5 a 4, ao que foi, até então, considerado o melhor jogo do campeonato brasileiro de 2011 (honra agora transmitida à batalha de hoje): Flamengo e Santos. Reparem que Flamengo e Fluminense estão envolvidos nesses dois jogaços, como se, nos tempos atuais, a tradição dos confrontos entre os dois começasse a se espraiar para outros adversários, menos interligados pelo sangue, mas tão empenhados na luta aberta, espetacular, peladeira, e que sempre reserva áureos momentos de alta cultura futebolística, em que jogadas inventivas surgem do nada e se concretizam como obra eterna.

Vocês perguntarão, por que pelada, então? Porque impregnada de falhas bisonhas, de entregas de ouro de diversas naturezas dos homens da defesa e meio-campo, em ações patéticas apenas passíveis de acontecer com profissionais que se deixaram possuir por paixões íntimas incontroláveis. Os dois frangos solenes do goleirão Diego Cavalieri; a falha na bola alta da nova jóia de Xerém, Elivélton, que perdeu o tempo da jogada, deixando o adversário livre para marcar; a virada de jogo totalmente descalibrada de Mariano, propiciando o contra-ataque que gerou o terceiro gol do Grêmio. Momentos indefectíveis do mais alto grau de patetismo, apenas presente nas batalhas míticas em que sangue, suor e lágrimas são derramados nos gramados em que o esporte bretão tem lugar.

Sim, e se o embate é mítico, certamente foi protagonizado por algum herói, um Aquiles, um Odisseu, um semideus que tenha desequilibrado a balança para um dos lados da disputa acirrada. E, graças às divindades do futebol, o herói eleito para conduzir um dos times à vitória usava o manto verde, branco e grená e tinha um nome à altura: Fred. O artilheiro do engenho e da arte, tantas vezes questionado por suas noitadas e displicências pouco profissionais, foi o autor da façanha inaudita de marcar quatro gols numa única partida.

E que gols! O primeiro, num desvio sutil de cabeça, em meio a uma multidão de zagueiros, a partir de um cruzamento ferino feito por Mariano pela direita do ataque; o segundo contou com a participação luxuosa de mais um daqueles passes milimétricos, digno de um Gerson, feito pelo mago Deco, lançando a bola quase do meio de campo, para deixar Fred na cara do gol; o terceiro foi um pênalti batido como devem ser batidos os pênaltis: sem brincadeira, forte e seco, no cantinho esquerdo do arco do goleiro; o quarto foi uma pintura neoclássica: teve uma embaixadinha mole antes da puxeta sutil, quase de costas para as traves, dada por Fred com tranquilidade mineira, com a bola ultrapassando, lenta e leve, quase entediada, a linha do gol. Sóbis - um segundo herói tão fundamental como o mirmidão Pátroclo em Tróia – desdobrou a performance excelsa de Fred com um golaço de fora da área, no ângulo, um petardo que o goleiro gremista ainda teve forças para chegar e tocar na bola, mas não para desviá-la de seu fatídico destino: o fundo das redes.

Amigos, quando saí do estádio comemorando a frenética vitória do Flu, feliz da vida entre os mortos efusivos e vivíssimos tricolores ao meu redor, encontro com a viúva botafoguense sentada na calçada. Em seu estilo de melindrosa dos anos 20, como sempre, de piteira e cigarrilha, cabelo a la garçonne, boquinha vermelha em forma de coração à Gloria Swanson, a pele branquíssima, vestido tubular de seda, meias beges, a darling mirava o nada com um olhar distante e profundo. Estava com saudades sombrias do falecido, certamente. Estranhei que ela estivesse ali, na sarjeta, na saída de um jogo do Fluminense, muito embora sem perder a pose, claro, de quem sempre está preparada para uma próxima festa regada a charleston e champagne.

Ao me reconhecer, se levantou, lépida como uma menina, e me abraçou carinhosa. Perguntei se estava tudo bem, etc e tal. E ela me respondeu sem pestanejar que sim, que estava ali pois tinha participado de uma pajelança com o filósofo botocudo pela manhã e ele dissera que recebera uma mensagem do além de seu marido, na qual afirmava, categórico, que não perderia o jogo do Fluminense nessa noite por nada. Abri um sorriso, dei meu braço para a viúva botafoguense, e fomos terminar a noite no Lamas, entre baforadas de ópio e goladas alegres de chandon. Acompanhados, evidentemente, de seu adorado falecido, o Tricolor de Lábios Roxos, mais vivo do que nunca, depois dessa maravilhosa pelada histórica.

sábado, 12 de novembro de 2011

Um Fluminense latin lover

Amigos, foi uma noite para a torcida tricolor esquecer. Digo, para esquecer, claro, se houvesse tempo para isso. Se o campeonato estivesse em seu início ou no meio. Mas diante da situação atual, não há como esquecer. Faltavam apenas cinco rodadas para o final, antes do jogo de hoje, agora, para o Fluminense, somente míseros quatro jogos para tentar, mais uma vez, o impossível. As coisas se complicaram para o tricolor mais famoso do planeta. Temos que, amanhã, tirar nossas toalhas do armário de mogno para secarmos nossos adversários diretos ao título. O que não deixa de ser uma esperança de que o imponderável volte a nos visitar. Amigo antigo nas vitórias improváveis e inimigo feroz nas derrotas anunciadas. Sim, por que a derrota para o Coelho estava anunciada por vozes ecoando dos abismos do nada há milhões de anos. Bastava captar no ar. Por ora, entretanto, ouço apenas o canto das sereias, embriagante, dizendo que o Tricolor das Laranjeiras será o campeão brasileiro de 2011.

Vocês hão de perguntar: o que aconteceu com esse homem que não consegue enxergar a verdade mais deslavada, esfregada sem meios tons em seus focinhos? O máximo que o Fluminense conseguirá neste campeonato é uma vaga para a Libertadores...e olhe lá...Contudo, eu vos afirmo, não por cegueira, ironia ou persistência gratuita: o Fluminense, atual campeão, manterá, em 2011, o título nacional em Álvaro Chaves. Afirmo isso por que, após o silêncio que se espalhou pelos quatro cantos do Engenhão, hoje, devido à derrota acachapante e incontestável para o América Mineiro - nosso carrasco eterno -, o Velho do Restelo apareceu ao meu lado, com suas imensas barbas de patriarca e seus cabelos esvoaçante brancos. Foi no final do jogo, veio como uma aparição espectral e, sem papas na língua, sussurrou em meu ouvido: Nada para o Fluminense é fácil. O campeonato estava começando a se tornar fácil. Agora sim, depois dessa derrota acachapante, creio mais do que nunca na consagração de nossas hostes guerreiras!

Vocês conseguem acreditar nisso? O Velho do Restelo, saído das páginas de Os Lusíadas, de Camões, aquele mesmo que condenava a ousadia, chamado-a de insana, do povo português se lançar ao mar para conquistar o desconhecido nas Índias e nas Américas. Ele mesmo, o severo, a própria tradição encarnada, o Sr. antiaventura, o implacável, agora se aventurando em afirmar que a narrativa do título por vir estava apenas começando. Incrédulo diante daquela figura de alpercatas, cajado na mão e túnica inconsútil, subindo, encurvado, as arquibancadas do Estádio Olímpico João Havelange, num ritmo mais acelerado do que a vasta procissão atônita da torcida pó-de-arroz, olhei para ele e retruquei: pelo amor de deus, Velho, respeite a dor que invade a nossa alma, já ferida por mais de mil espíritos daninhos! E ele, corpo serelepe, apesar de sua voz de timbre centenário, sentenciou: depois da rodada de amanhã conversamos. Os nossos adversários irão tropeçar. Na quarta, contra o Grêmio, este estádio estará mais cheio ainda do que hoje; e, aí, sim, começará a nossa verdadeira arrancada rumo ao tetra!

Quando esbocei o desejo de responder, o Velho de Restelo já havia sumido, sem deixar rastros. Apenas vi seu cocuruto lá adiante, em meio à multidão verde, branca e grená, descendo as rampas espiraladas em direção aos portões de saída. Alguns torcedores tentavam em vão explicar o inexplicável, outros nem tentavam, a maioria silenciava funebremente. Foi quando apareceu o latin lover, o marido infiel da loura indignada, com quem assisti o primeiro tempo do jogo. No intervalo, por pura superstição minha, pois o Fluminense já perdia por um a zero, sem jogar bulhufas, disse ao latin lover que iria ao banheiro, e não voltei mais para o lugar ao seu lado nas cadeiras. Fui para outro canto, para ver se a sorte também mudava. Não adiantou, o time de Minas, praticamente rebaixado, defendeu a honra de seu estado com bravura e tranqüilidade, a mesma que sobrou ao Flu na vitória sobre o Inter no domingo passado, e a mesma que faltou, além de vibração e entrega, ao time hoje.

O sujeito, de bigodinho fino, cabelo de brilhantina, camisa estampada aberta no peito, sapato bicolor, mantinha o mesmo riso cínico no rosto do início do jogo. Momento em que afirmara que estava tão feliz com a volta da torcida tricolor, em peso, ao estádio, que até permitia que as mulheres e moças que estavam ali com seus namorados, o traíssem, pois todas, sem exceção, já tinham um dia sido apaixonadas por ele. Tamanha empáfia não cabia dentro dos olhos esbugalhados do latin lover, transbordava para os alambrados, ondulava pelos setores Superiores e Inferiores, Norte e Sul, se espalhando pelo gramado, como um vírus maligno, que só atingiu a alma e o corpo do time do Fluminense. Alma morta, corpo mole. Empáfia e máscara pesada.

Mas vocês dirão? E o América? Não teve méritos na vitória acachapante sobre o seu velho freguês, que não ganha do time mineiro há mais de 50 anos? E para quem, em campeonatos brasileiros, desde 1971, nunca perdeu (agora são quatro empates e quatro derrotas)? Claro que sim. Teve calma, boa disposição em campo, inteligência. Tocou muito bem a bola, soube jogar pelo setor mais fraco do time das Laranjeiras, nas costas do jogador de ocasião, Jefferson, que substituía a Carlinhos, e que acabou desperdiçando a oportunidade de virar herói, pois os deuses do futebol preferiram dar-lhe o papel de vilão do jogo. Mais do que ninguém, o Coelho mereceu a acachapante e gloriosa vitória!

Contudo, se já falei em outra crônica da visita, rara, porém verossímil, de um tedioso e aristocrático personagem em algumas cenas dos espetáculos em que o tricolor se exibe - um Fluminense tão Flaubert -, hoje, amigos, mais um tipo surgiu para desfilar na galeria das máscaras que entram, maculando, desabusadas, as narrativas épicas da ópera encenada pelo Flu nos gramados do planeta: o soberbo marido infiel, indigno de sua torcida apaixonada, um Fluminense latin lover.

domingo, 6 de novembro de 2011

A loura indignada

Amigos, ontem, ao sair de alma lavada do clube mais tradicional, mais encantador, mais doce do planeta, cruzo, numa esquina desleixada das Laranjeiras, com uma loura indignada. À distância, parecia que a mulher estava em meio a uma briga de casal, numa discussão que já ultrapassara o mero pedido de separação. Devido à ênfase seca dos gestos, pois ainda não podia ouvir a conversa, deduzi que ela falava de temas cruéis, de final de relacionamento - como partilha de bens, pensão alimentícia, guarda das crianças – com um interlocutor que, certamente, era o próprio marido infiel. Via apenas aquela figura esguia, numa das mãos a coleira de um cãozinho ruivo, indiferente a tudo, na outra o dedo em riste, coordenando movimentos para cima e para baixo em sincronia com um dos pés, vestidos com as sandálias da indignação. A pessoa a quem se dirigia estava sentada num carro estacionado na calçada, de costas para mim, oculta a minha visão.

Quando me aproximei, tive, simultaneamente, dois espantos num só golpe: um visual, outro auditivo. Primeiro, porque o interlocutor era um homem aleijado, sem as pernas, que vendia balas nos sinais para sustentar a sua dignidade de cidadão marginalizado, e que se encontrava numa posição mais relaxada do que apaixonada; portanto, não possuía, a princípio, o perfil de latin lover canalha, que acabara de ser desmascarado pela loura indignada. Depois, pela frase terrível que ouvi, com ares de vaticínio, saída da boca do sujeito, e que me fez dar toda razão à mulher. “O Fluminense, que não tem mais chance de ser campeão, no máximo vai arrancar um empatezinho suado lá no Sul; o Botafogo vai ganhar do Figueirense; o Vasco, do Santos; e o Flamengo vai tomar um sacode do Cruzeiro no Engenhão...”

Amigos, estávamos a seis rodadas do final do Brasileirão de 2011, um dos mais disputados, mais emocionantes, mais equilibrados desde que o sistema de pontos corridos foi instituído na competição, e eis que surge um profeta! Isso mesmo, um profeta que emerge do nada, sem a bênção divina, sem um séquito de fiéis, sem uma trajetória mística, sem uma obra consagradora qualquer! Filho das ruas calorentas e malandras da cidade de São Sebastião, da cultura oral mais improvável e mais poética, placidamente encostado num Fiat pálio cinza, surge o profeta destilando melífluas visões premonitórias!

Meu primeiro ímpeto foi parar ali e me colocar ao lado da loura indignada, fazendo coro ao discurso enfezado dela que, só agora, na minha passagem por eles, pude captar o sentido. Falava que nenhum mortal ou imortal, depois das provas que o autêntico Tricolor dera nos últimos anos, podia duvidar mais do impulso heróico, das arrancadas inesperadas, salvadoras do Fluminense. E que os estatísticos costumavam perder seus empregos, sempre que abusavam de suas previsões lógicas para a equipe centenária das Laranjeiras. Contudo, segui em frente, não parei, tinha compromissos que me tiravam do lugar de flâneur carioca, com tempo de sobra para as inesperadas delícias do cotidiano, e me colocavam como mais uma peça da engrenagem contemporânea do capitalismo neoliberal. Pude, entretanto, já na outra ponta da rua, ouvir ainda uma gargalhada amarela do profeta de ocasião ecoar, após a abertura do sinal, e se misturar ao barulho dos carros que arrancavam.

Como ninguém é profeta em sua terra, o nosso querido homem das ruas errou em todas as suas previsões. Talvez esteja, nesses dias de superinformação globalizada, mais influenciado pelos estatísticos do que pelos místicos visionários. O Flamengo goleou o Cruzeiro; o Vasco perdeu para o Santos; o Botafogo, para o Figueirense e o Fluminense...bem, o Fluminense calou, mais uma vez, os que querem tirar a magia e a graça encantatória do futebol: venceu o Inter, em pleno Beira-Rio lotado, por um milagroso e imponente 2 a 1.

Talvez o placar não reflita, como é comum no esporte bretão, a verdade da partida. Não que o Flu tenha imprensado o time colorado, perdido infinitas chances de gol, dando o famoso sufoco; nem, ao contrário, que o Internacional tenha feito o mesmo com o tricolor. A consagração do time carioca veio, justamente, por ter amarrado o time do Sul, não deixando que ele crescesse em nenhum momento, conduzindo a dinâmica do jogo com maestria durante quase os 90 minutos. O Inter, que venceu os principais candidatos ao título em sua casa, com o apoio de sua fanática torcida, impondo um ritmo alucinante aos adversários, não esperava tamanha maturidade do time carioca. E, diante de um Flu operístico, viu a sua estratégia ser minuciosamente desconstruída. Principalmente, pela atuação de gala de alguns jogadores, peças fundamentais nos diferentes setores da equipe das três cores que traduzem tradição, e da calma e inteligência, nem sempre constantes, do técnico Abel.

Sóbis foi sublime no ataque, ao lado de um Rafael Moura artilheiro e guerreiro; Edinho e Valência foram implacáveis na marcação e no desarme; a dupla de zaga, apesar da falha infantil de Leandro Euzébio, mostrou-se quase sempre segura; os laterais eficientes e regulares no apoio e na defesa, como sempre. Mas o nome do jogo, o craque zen que desequilibrou as ações, foi o mago Deco. Sim, o jogador que custou milhões aos cofres do Flu e de sua patrocinadora; que jogou pouquíssimas partidas, já que teve problemas físicos que o levaram a pensar até em encerrar a carreira. E que ainda não tinha dito a que veio de modo tão enfático como dessa vez. Primeiro, se readaptando ao futebol brasileiro; logo a seguir, sendo coadjuvante do nosso saudoso cracaço argentino Conquinha; e, por fim, vítima que foi de inúmeras e renitentes contusões.

Deco regeu o meio de campo tricolor com o controle de cada instrumento da orquestra de jogadores dispostos em campo. Foi preciso em dois lançamentos metrificados, escandidos, postos com a mão nos pés dos companheiros de equipe. O lance do primeiro gol certamente foi pintado pelo autor da Mona Lisa, com perspectiva renascentista e tudo o mais. O passe de calcanhar de Sóbis, que deslocou três colorados; a calma de Edinho na linha de fundo para encontrar Deco livre no bico da grande área; a bola tocada com açúcar pelo Mago, fazendo um arco flexível no ar, até atingir a cabeça de Rafael Moura, que estava na cara do gol, na hora certa, no local certo. Foi uma jogada para ser rememorada eternamente, como os gols da seleção brasileira na Copa de 70, quando, de repente, em meio à disputa heróica de botinadas e empurrões dos jogadores, comuns às partidas que valem ouro, acontecia um suave milagre, e o futebol era elevado à categoria de grande arte, com assinaturas coletivas leves e elegantes, inscritas no quadro do campo com estilo e paixão.

O segundo gol tricolor também foi fruto da antevisão da jogada por parte de Deco, descobrindo uma brecha iluminada, num rápido átimo, no meio da floresta negra da tática colorada. Clarão que deixou a bola chegar limpa, aconchegante, aos pés de Rafael Sóbis que, com sabedoria e precisão samurai - mas de um samurai de corpo relaxado - colocou a bola no canto preciso, sem chances para o goleiro do Inter...

Amigos, por isso, vos falo: o Fluminense ganhou com a autoridade do campeão! Pode até não ser, pois nunca na história dos Campeonatos Brasileiros tivemos tantas equipes juntas disputando pau a pau um título e, ao mesmo tempo, cedendo-o, parecendo abrir mão, de modo displicente, do desejo de agarrar com unhas e dentes o almejado caneco... Agora, revendo o meu encontro inesperado com o casal insólito, à véspera do jogão decisivo entre Fluminense e Internacional, descubro que errei de profeta! A verdadeira profetisa era a loura indignada! A verdadeira pitonisa! A sábia!